"Trabalhou" com Tim Burton, Neil Gaiman, Frank Miller, Christopher Nolan
ou Alan Moore e é o super-herói mais filmado e mais analisado no divã. Dia 23 de Julho foi o Dia Batman.
O mais filmado de todos os super-heróis, best-seller nas lojas de comics
e também o justiceiro mais analisado por psiquiatras e psicólogos. Há última
quarta-feira foi o Dia Batman e há 75 anos nascia uma criança milionária,
que sofreria um trauma universal e se transformaria num vigilante à
margem da lei, superando-se e agarrando gerações pelo caminho. Do
pós-guerra ao camp dos anos 1960, passando pela acidez dos anos
1980 que parece envolver para sempre a cidade fictícia de Gotham, o
apelo de Batman é o do super-herói que não o é, do ser humano moral e
imoralmente superlativo. Dia 23 de julho foi dia de festa, cantam as nossas
torturadas almas, para o menino Batman, lá no cimo de prédios cinzentos,
uma salva de balas?
Muitas encarnações, séries e linhas narrativas
depois, Batman é celebrado nesta um pouco por todo o mundo,
com várias bibliotecas, livrarias e lojas de comics a fazer a festa com uma reedição especial (e gratuita) do número 27 da Detective Comics
de 30 de Março de 1939 – o livro em que aparece pela primeira vez o
homem-morcego.
Num ano em que há uma exposição-Batman nos estúdios Warner em Los Angeles, em que a série de TV dos anos 1960 vai estrear-se no home video, que o Batman de Tim Burton será reeditado no Outono e em que há novo game, o alter ego noturno do milionário Bruce Wayne é constantemente “um dos mais procurados” e “neste momento é o best-seller
da loja”, atesta Vasco Lopes, livreiro da BD Mania que cresceu com
Batman à cabeceira. Há mais de 15 anos a comercializar e distribuir
banda-desenhada e material associado, a BD Mania tem no seu perfil de
Facebook um Santo António com máscara negra na cara e um menino vestido
de Robin ao colo. Há o deputado-Batman, o manifestante vestido de Batman
para lutar pelos direitos do país, toda uma cultura popular embebida
em morcegos e ideias de justiça ou falta dela. “Batman é um modo de
vida”, resume Jim Lee, ilustrador e editor na empresa DC Comics.
Relógio parado em 1986
Nas últimas semanas, duas figuras centrais do universo Marvel (o outro gigante da edição de comics mundial) mudaram. Thor vai ser uma mulher, o Capitão América vai ser um negro. Há cinco anos, era a Batwoman que vivia a sua homossexualidade, há dois a Marvel celebrou o seu primeiro casamento gay, o Super-Homem já morreu inúmeras vezes e Bruce Wayne também…“Estas inflexões narrativas são um golpe duplo: tira-se o fôlego aos fãs com a mudança drástica e reconquistam-se os seus corações um ano depois devolvendo tudo à ‘normalidade’”, contextualiza João Lemos, ilustrador e autor de BD português que já colaborou com a Marvel. Apesar de, lembra, Batman também já ter tido outras vidas nos chamados universos alternativos da DC (do Japão medieval a uma Gotham vitoriana, exemplifica), o ilustrador considera: “À noite, todas as silhuetas icônicas são pardas mas, a longo prazo, a história requer elementos como a duplicidade de um semi diurno Bruce Wayne para se sustentar”. Ou seja, a essência do homem-morcego será menos permeável a estes mecanismos de diversificação e mercado das editoras. Mas uma dessas séries de histórias independentes mudou o morcego para sempre.
Nas últimas semanas, duas figuras centrais do universo Marvel (o outro gigante da edição de comics mundial) mudaram. Thor vai ser uma mulher, o Capitão América vai ser um negro. Há cinco anos, era a Batwoman que vivia a sua homossexualidade, há dois a Marvel celebrou o seu primeiro casamento gay, o Super-Homem já morreu inúmeras vezes e Bruce Wayne também…“Estas inflexões narrativas são um golpe duplo: tira-se o fôlego aos fãs com a mudança drástica e reconquistam-se os seus corações um ano depois devolvendo tudo à ‘normalidade’”, contextualiza João Lemos, ilustrador e autor de BD português que já colaborou com a Marvel. Apesar de, lembra, Batman também já ter tido outras vidas nos chamados universos alternativos da DC (do Japão medieval a uma Gotham vitoriana, exemplifica), o ilustrador considera: “À noite, todas as silhuetas icônicas são pardas mas, a longo prazo, a história requer elementos como a duplicidade de um semi diurno Bruce Wayne para se sustentar”. Ou seja, a essência do homem-morcego será menos permeável a estes mecanismos de diversificação e mercado das editoras. Mas uma dessas séries de histórias independentes mudou o morcego para sempre.
Recuemos no tempo. Batman nasceu em 1939 pelas mãos do ilustrador Bob Kane e do argumentista Bill Finger como uma encomenda da DC
para que se juntasse mais um super-herói ao rol encabeçado naquela casa
pelo muito bem-sucedido Super-Homem. No ano seguinte saía a primeira
revista Batman, já com outras duas personagens que ajudaram a
definir, como imagens no espelho, o cavaleiro das trevas – Coringa e Mulher-Gato. A primeira era de Batman foi escura, tortuosa. Nos anos 1950 e
60 tornou-se sorridente, quase paternal, além de irreprimivelmente camp na série televisiva protagonizada por Adam West. Depois veio a loucura do vigilante em busca de vingança e do storytelling mais rico e inovador, as tensões dos anos 1970 plasmadas em quadradinhos. E o relógio pára em 1986.
The Dark Knight Returns foi Frank Miller (Sin City, 300)
a reescrever e redesenhar com Klaus Janson a história de Batman numa
minissérie em que o herói estava mais velho (55 anos), Gotham cheia de
crime e o Estado e Super-Homem em modo de perseguição ao homem-morcego
saído da reforma. A Guerra Fria e o fosso da luta de classes era, tal
como para outra importante série que despontava nesse ano na DC – a
novela gráfica Os Guardiões, de Alan Moore e Dave Gibbons – o pano de fundo perfeito dentro e fora dos quadradinhos para uma visão densa da sociedade. Muitas outras histórias e momentos
ajudaram a definir o morcego, mas “o que o Frank Miller fez é agora
inseparável do ADN da personagem, que se tornou assim o contraponto
lunar do solar Super-Homem”, postula João Lemos. E Vasco Lopes, rodeado
de comics, heróis e vilões, não hesita em definir esta visão em
quatro livros como a sua preferida. Leu-a aos 13 anos – “foi talvez a
história mais adulta que li na altura” – e prendeu-o o facto de ser “um
Batman mais velho, muito Clint Eastwood, que muda a nossa percepção do
que é hoje” a personagem. “Batman torna-se mais ‘fascista’ com essa
história, mais cruel, mais sádico.”
Sendo teoricamente defensores do “bem”, de facto há traços conservadores e até reacionários neste tipo de comics
e narrativas – o Estado, as autoridades, estão corruptos, podres,
perderam a bússola moral. Batman, como outros super-heróis, é um ícone
que pode representar o que a sociedade lhe fez, nos fez, e resvalar para
o que os filósofos norte-americanos John Shelton Lawrence e Robert
Jewett consideram ser o défice democrático dos heróis americanos. Citam o
bélico Rambo mas também o Super-Homem e Batman como exemplos. “As
figuras super-heróicas nunca são eleitas para cargos públicos, nunca se
submetem às restrições da lei ou da constituição e nunca contribuem para
a discussão que é a matéria da democracia. O comportamento do
herói-macho é tipicamente fascista, apesar de todas as alegações de
resgate da democracia”, lê-se em The Myth of the American Superhero.
E tudo isto, da identificação à esperança num herói individualista, está na receita do sucesso de um herói criado antes do microchip e que agora convive com drones,
nascido no início do domínio nazi e que passou a última década sob o
espectro do terrorismo. O seu apelo “é o facto de não ser super, de ter
falhas”, diz o livreiro, “podemos identificar-nos com ele quando somos
miúdos. Por ser tão ‘normal’”. “O estatuto de playboy de Tony
Stark [o milionário sob a armadura do Homem de Ferro] ou a tensão de uma
vida dupla de Clark Kent ou Peter Parker [as identidades “civis” do
Super-Homem e do Homem-Aranha] competem de igual para igual com Bruce
Wayne”, opina por seu turno João Lemos, “contudo, o Batman tem o apelo
de uma figura que é sombria e age pelo bem, um guilty pleasure
que se vende como o melhor dos dois mundos. É como ser o Conde Drácula a
noite toda e de manhã merecer receber a chave da cidade das mãos do mayor”.
Os quatro livros de The Dark Knight Returns – que com The Killing Joke, de Alan Moore, está entre as mais elogiadas séries de sempre dos comics – foram também uma das bases para o primeiro Batman (1989) de Tim Burton no cinema – um fenómeno em si porque, como escreveu o editor Peter Bart na Variety juntando-se a vários historiadores de cinema na opinião de que este filme marca o nascimento do conceito do franchise
dos filmes de super-heróis que na última década dominou o mercado. E
Batman é a personagem super-heróica mais bem sucedida em Hollywood, com
sete filmes só seus que renderam 3,7 mil milhões de dólares – entre as
sequelas menos felizes pós-Burton e a trilogia de Christopher Nolan que
deu talvez ao mundo um agente do caos definitivo com Heath Ledger na
pele de Joker. Na calha para o Verão de 2016 está, claro, mais um
bat-filme. Zack Snyder (realizador de Os Guardiões, 300 e de Homem-de-Aço) foi buscar Ben Affleck para vestir o novo bat-suit em Batman v Superman: Dawn of Justice e a Internet e o Twitter quase se estragaram com a reacção dos fãs. Batman ainda mexe, ainda e sempre.
Sem heróis e com bullies
É que “o mundo não tem heróis”, “ninguém que inspire verdadeiramente a esperança”, considera Danny DeVito, que continua a ser o vilão Pinguim cinematográfico desde Batman Returns (1992). Batman representa “a fé” no ser humano, disse o ator na apresentação da exposição em Los Angeles. A humanidade do morcego é a chave porque “Batman é o super-herói sem superpoderes, é a sua personalidade que o define”, ajuda Travis Langley, psicólogo norte-americano e autor de Batman and Psychology: A Dark and Stormy Knight. É ele que assinala na revista Psychology Today que os seus colegas se dedicam mais ao vigilante de Gotham do que a qualquer outro super ser dos livros de BD – e é também o único a ver um hospital psiquiátrico, o Arkham Asylum, dedicar-se a albergar as suas nêmesis.
É que “o mundo não tem heróis”, “ninguém que inspire verdadeiramente a esperança”, considera Danny DeVito, que continua a ser o vilão Pinguim cinematográfico desde Batman Returns (1992). Batman representa “a fé” no ser humano, disse o ator na apresentação da exposição em Los Angeles. A humanidade do morcego é a chave porque “Batman é o super-herói sem superpoderes, é a sua personalidade que o define”, ajuda Travis Langley, psicólogo norte-americano e autor de Batman and Psychology: A Dark and Stormy Knight. É ele que assinala na revista Psychology Today que os seus colegas se dedicam mais ao vigilante de Gotham do que a qualquer outro super ser dos livros de BD – e é também o único a ver um hospital psiquiátrico, o Arkham Asylum, dedicar-se a albergar as suas nêmesis.
Bob Kane contou que decidiu com Bill Finger que a
história de origem do homem-morcego só podia ser a do assalto que cria
um órfão – “percebemos que nada há de mais traumático do que ter os pais
assassinados perante os nossos olhos”, lê-se no livro da DC Batman: The complete history
(1999). “A orfandade é um trunfo poderoso – tal como os fãs de Harry
Potter podem experienciar, o órfão, por um lado, é incrivelmente livre
na sua relação com o mundo (o que é valioso num mundo de fantasia) e,
por outro, tem o espírito dos pais e da respectiva perda omnipresente no
seu percurso (o que é terrivelmente romântico)”, lembra João Lemos.
Este é um herói romântico ou gótico que surge nas trevas de uma cidade
podre e na esteira do sucesso do Hércules aos quadradinhos – o
Super-Homem que ganha poder com o nosso sol em contraste com “lendas
mortais como Robin Hood e heróis pulp como Zorro ou o Sombra,
homens extraordinários mas, ainda assim, homens”, defende Langley.
Mortais. “Por que é que as crianças não temem este herói vestido como um
monstro?”, pergunta-se o psicólogo. “Porque é o monstro deles. O
nosso.” É o rapazinho que cresce e se fortalece e que quer virar o
feitiço contra o feiticeiro. “Ele é a parte de nós que quer assustar e
fazer desaparecer os bullies da vida.”
Imagens retidas através de pesquisa no Google
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